18/08/2010

As pescas e uma política integrada para o mar

(Publicado na revista País Económico nº 96, em Agosto de 2010. Texto de Liberato Fernandes, Presidente da Direcção da Porto de Abrigo)

As estatísticas relativas à pesca durante o 1º semestre de 2010 (menos 22% comparativamente a 2009) e considerando que 2009 já tinha um registo de quebra no valor superior a 18% revelam a entrada no terceiro ano consecutivo da crise num sector fundamental para a economia açoreana, tanto nos aspectos económicos como nos sociais: os produtos da pesca constituem uma das principais exportações e ocupam (no conjunto da fileira) mais de 10% da população activa. É uma realidade negra, tem de ser encarada frontalmente como única forma de transformá-la. Se, em 2007, o bom ano de pescas em volume de capturas e valor deu-nos a ilusão de que a economia da pesca açoreana "estava boa e recomendava-se" a situação presente revela as profundas fragilidades do sector: algumas espécies demersais e de profundidade encontram-se no limite da sustentabilidade; a pesca dos tunideos (espécie migratória) está sujeita a grande variabilidade nas capturas e os desenvolvimentos das tecnologias da pesca podem afectar grandemente as frotas (como as dos Açores e da Madeira) que dispõem de pouca autonomia e não podem acompanhar os movimentos migratórios da espécie.

Se há dez anos a globalização dos mercados apenas afectava os produtos da pesca açoreanos nas exportações, hoje os produtos congelados da pesca de países africanos, asiáticos e da América do sul afectam mesmo os micro-mercados de todas as ilhas, mesmo as mais pequenas e isoladas, como o Corvo, as Flores e a Graciosa. Um estudo feito pela Porto de Abrigo em Dezembro de 2009 revelou a existência de quase uma dezena de espécies congeladas, esvisceradas à posta, equivalentes a espécies regionais (ou vendidas como tal) com preços mais baixos aos preços da primeira venda das espécies em fresco, inteiras, capturadas nas águas dos Açores.*

Este conjunto de circunstâncias faz com que pela primeira vez se registem simultaneamente quebra no volume das capturas e nos preços da 1ª venda. No entanto a "economia da pesca açoreana" não regista quebra de activos: pelo contrário, nos últimos dois anos aumentaram as tripulações (e trabalhadores de terra) dependentes das embarcações, particularmente em São Miguel, que representa cerca de 37% da produção, mas mais de 50% dos activos. Porquê? Porque, em tempo de crise, as micro-empresas familiares que constituem a quase totalidade do tecido empresarial da pesca açoreana, tendem a (re)absorver os que, em período de expansão económica, deixaram a pesca para se dedicarem a outras actividades comparativamente melhor renumeradas e de rendimento mais estável, como é o caso da construção civil.

O retrato da crise neste sector da economia açoreana traduz-se em números que não podem deixar de ser preocupantes: 85% do rendimento médio mensal líquido por tripulante, na ilha de São Miguel foi inferior a 300 euros; cerca de 10% das "embarcações-empresas de pesca" em 2009 não seriam economicamente viáveis se tivessem de pagar o salário mínimo regional, o que é indicador de uma situação socialmente insustentável. Os dados contabilísticos de 121 embarcações revelavam que destas apenas 6 embarcações teriam condições de aplicar a Lei 15/97 de 31 de Maio que estabelece o Regime Jurídico do Trabalho a bordo das embarcações de pesca. Os restantes sectores da fileira, nomeadamente o comércio e a indústria transformadora, também passam tempos difíceis tanto como resultado dos factores atrás referidos: crise nas capturas, concorrência desleal de mercados em contexto de globalização, agravado com as dificuldades de acesso ao crédito bancário. Resultado: nos últimos dois anos a Fabrica Santa Catarina (Ilha de São Jorge) foi intervencionada pelo Governo através da Lotaçor, a Cofaco encerrou uma das três fábricas (Ilha do Faial) e, durante o ano de 2009 fecharam 10 peixarias e balcões de venda de pescado na Ilha de São Miguel. As crescentes exigências de controlo de qualidade, decorrentes da aplicação do HACCP, acompanhadas do agravamento fiscal inviabilizam o pequeno comércio ambulante e afectam os produtores.

Feito este relato o(a) leitor(a) será levado(a) a interrogar-se: terá a pesca viabilidade nos Açores? Respondemos com outra pergunta: Haverá alternativa para as comunidades dependentes da pesca nos Açores?

Os Açores são uma região marítima. A pesca terá sempre um lugar de relevo na economia açoreana mas tem de proceder-se a uma profunda reestruturação, com diminuição dos custos de exploração a todos os níveis, incluindo, as taxas pagas as entidade marítimas e à empresa de capitais públicos que detêm o monopólio da 1ª venda, (a Lotaçor) e dos preços dos seguros. Paralelamente a reorientação de parte dos activos para actividades económicas emergentes ligadas ao mar (entre elas actividades marítimo/turísticas da pesca turismo e de exploração submarinas). O turismo, ao promover o aumento do consumo de produtos da pesca regional pode permitir a valorização do pescado regional pois "exporta" sem os inerentes custos dos transportes. A valorização da qualidade e da sustentabilidade da pesca e dos produtos de pesca açoreanos é também essencial.

Isto implica necessariamente uma política integrada para o mar que não está a ser feita. Um dos exemplos é o baixo nível de investimentos feitos com apoio comunitário no actual quadro. Estão a desperdiçar-se as verbas do Fundo Europeu das Pescas e os Açores registam a mais baixa execução do país.

A adopção duma política integrada para o mar, que garanta a dupla sustentabilidade (das espécies e dos homens e das mulheres que dependem da pesca) exige dos decisores políticos uma grande abertura para o diálogo, o envolvimento associativo, implicando respeito pelas divergências e um relacionamento institucional isento com os diferentes parceiros públicos ou privados independentemente das suas opções político/partidárias. Deve existir uma clara opção pelo maior envolvimento da sociedade civil, nomeadamente das empresas e das associações.

Alguns departamentos governamentais precisam de libertar-se do profundo espírito corporativo que tanto se manifesta através duma atitude paternalista para com o sector extractivo da pesca, como através de práticas controlistas e autoritárias. É evidente que o sector da pesca é de um daqueles onde as marcas corporativas mais se fizeram sentir, tanto nos profissionais e nas comunidades, como em todas as áreas da administração do Estado.

Todos(as) somos poucos(as) para agarrar com ambas as mãos as potencialidades e oportunidades do mar que a enorme zona económica exclusiva portuguesa nos proporciona. Tenha-se em conta que o "Mar dos Açores" constitui mais de 50% da ZEE nacional.

* Países de origem das espécies esvisceradas e congeladas com preços de venda inferiores dos preços de Lota dos Açores: Senegal, Quénia, Malásia, Vietname, Chile e Argentina.